sexta-feira, 19 de abril de 2013

O QUE SE PASSA NA 57ª CSW NA ONU - Relatoria de 12/03/2013


Campanha Mulheres Não Esperam Mais participa de debates preparatórios para a 57ª Comissão da Situação das Mulheres (CSW) da ONU. Foto: Telia Negrão. 





Sete em cada dez mulheres no mundo vivenciam violência com parceiro íntimo. 

Quem acompanha o panorama internacional sobre os direitos das mulheres sabe que a cada reunião nas Nações Unidas ressurgem os mesmos nós, desde os anos oitenta e noventa — Cedaw 1984, Cairo 1994 e Beijing 1995 —, e que todas elas tem exigido muita habilidade e trabalho argumentativo, além de constante articulação, para não sacrificar direitos, para manter conquistas e, se possível, avançar e evoluir politicamente.

Quem acompanha esse panorama também sabe que a cada reunião, quando se trata de defender os direitos humanos, os blocos de países se (re)configuram a partir de identidades e/ou interesses comuns, eventuais ou duradouros — há anos se sabe quem vai estar em cada lado dos debates. Entretanto, recentemente observamos uma melhor articulação de forças contrárias ao avanço da agenda das mulheres com estratégias sofisticadas no campo argumentativo. Tanto a construção como a desconstrução de posições nas Nações Unidas requer uma engenharia complexa, mobilizando tecnologias de informação e de pessoal qualificado, conhecedor não apenas das políticas nacionais mas, principalmente, do contexto internacional.

No ano passado, quando o tema da Comissão da Situação das Mulheres (CSW) foi dedicado às "mulheres rurais", não se obteve um documento de consenso depois de meses de discussão. Venceu o discurso que estigmatiza e marginaliza os temas de gênero, como aquele sem possibilidade de bons acordos pois “são coisas de mulher”. Este fato ameaçou o papel dessa agenda nas Nações Unidas, por isso, nos próximos quatro dias na 57ª CSW, busca-se um acordo entre os países para a construção do texto final. Mas tal consenso não pode ser alcançado a qualquer preço. Não podemos retroceder.

Todos os debates giram em torno de um rascunho, um documento base apresentado pela coordenação da Comissão após meses de discussão. Desta vez ele começou como um texto enxuto, relativamente bom, e foi se transformando, a partir dos comentários e sugestões dos países, num monstrengo aparentemente indomável e inominável. Esta semana, portanto, o desafio vai ser encontrar um caminho plausível para o acordo sem sacrificar conquistas em seu nome. A disputa aqui é dura. Há quem adote a tese de que melhor um mau documento resultante de um consenso do que nada e há quem pense que, se é para perder direitos, melhor não ter documento algum. Mas até que se chegue nesse ponto, a luta por cada palavra e o seu conteúdo é o que move esta CSW.

Por mais absurdo que pareça, o tema da violência contra as mulheres, absolutamente comprovado, documentado e já com muitas legislações a respeito — mais de 120 países tem leis que defendem os direitos das mulheres e meninas; sete em cada dez mulheres no mundo revelam ter sofrido violência na vida privada — e por mais que tenhamos projeções assustadoras — mais de 50 milhões de meninas sofrerão casamento forçado até 2020, por exemplo — não há sinal de que um acordo para resolver esse imenso problema seja alcançado.

Nem o esforço das próprias Nações Unidas com o lançamento de uma campanha que reúne dez de suas agências, nem todos os discursos do Secretário Geral da ONU, Ban Ki-moon, e da Diretora Executiva da ONU Mulher, Michele Bachelet, utilizando linguagens já acordadas anteriormente, asseguram a obtenção de um piso mínimo em razão das implicações exigidas pelo tema.

Onde está o bom senso?
É lamentável observar tamanha falta de bom senso de alguns governos. A violência contra a mulher, após vinte anos de reconhecimento como violação aos direitos humanos, com tantas e múltiplas dimensões e configurações de direitos violados, não pode mais ser tratada como um fato isolado. Já temos profundas análises em todas as regiões do mundo sobre sua implicação na saúde física, psíquica, sexual e reprodutiva das mulheres e meninas. E isto, por incrível que pareça, de imediato aciona uma agenda explosiva nas Nações Unidas, a dos direitos sexuais e direitos reprodutivos, e da autonomia das mulheres em relação as suas decisões.

Vale esclarecer que o tema da violência de gênero também exige o debate sobre os diferentes modelos familiares, identidades, e as culturas “tradicionais” e tradições religiosas que autorizam e legitimam práticas de violação, como o casamento forçado de meninas de doze anos ou menos, as esterilizações impostas às mulheres que vivem com HIV, a proibição do aborto, mesmo em caso de estupro e violência, e as mutilações genitais, só para citar algumas mais extremas.

Ao apresentar-se como um fenômeno complexo que também se traduz em enormes custos para a economia, impactos nos sistemas de saúde, ausência no trabalho, déficit na participação política, trajetórias de prolongados sofrimentos e até a morte, o tema traz à tona discussões sobre o papel do estado, políticas, programas e serviços necessários, incluindo uma enorme necessidade de orçamentos definidos, investimentos a longo prazo, e compromissos dos governos responsáveis pela definição de políticas em diferentes níveis.

Na verdade, tanto na anterior como na atual reunião, fica evidente uma restrição de campos de disputa em torno dos direitos e da autonomia das mulheres e meninas, mas em especial um tipo específico de autonomia, a do corpo como o espaço de disputa sobre quem decide sobre ele. Anos depois, ainda os mesmos debates enchem as salas de negociação das Nações Unidas. Mas o que há de diferente — e animador — é que agora temos muito mais dados para provar que a emancipação social, sexual, econômica e política das mulheres influi no grau de desenvolvimento da humanidade. Uma pena que, em se tratando de relações governamentais, conseguir este reconhecimento e avançar para ações que beneficiem as mulheres como sujeitas de seus direitos e donas de suas próprias vidas, há uma imensa resistência.

Conservadorismo fundamentalista
Nesta reunião, até agora, o Brasil tem jogado um papel interessante ao anunciar que não aceitará nenhum retrocesso quanto aos direitos sexuais e direitos reprodutivos. Este é um tema nodal em Nova Iorque, onde, mais do que antes, está difícil construir blocos bem articulados em torno de vários temas. Observa-se que é mais fácil negar direitos do que afirmá-los, assim é que se percebe uma forte articulação entre países orientados pelo Vaticano (Santa Sé), países islâmicos e árabes, aliados à China, que embora tenham suas conhecidas diferenças, tem em comum posições anacronicamente conservadoras. Isso se expressa através de conceitos estreitos de família, da invisibilidade das diferentes orientações e identidades sexuais, e da omissão do estado na educação para a sexualidade, entre outros.

A metodologia desses setores conservadores é questionar a existência desses componentes da realidade e a sua citação em documentos anteriores, chamada de "estratégia de linguagem", e também de conteúdo, a partir da afirmação de que seus países não podem apoiar isso ou aquilo porque não houve acordo anterior. Ou seja, puxar para trás e apagar dos novos textos o que ao longo das décadas foi-se garantindo.

Passadas três décadas da aprovação da CEDAW, duas décadas da Declaração de Viena, do Programa de Ação de Cairo, da Conferência de Beijing e de tantos seguimentos destas reuniões nas quais foram, de modo profundo, reconhecidas as causas estruturais que levam as mulheres a serem desiguais, de fato ainda avançamos muito lentamente na realidade.

Representantes de países aqui tem o poder de decidir sobre a vida e a trajetória de bilhões de mulheres e meninas do mundo que são, potencialmente, todas vulneráveis à violência. Afinal, a violência simbólica, aquela que produz e reproduz padrões de comportamento em forma de mensagens, de estereótipos, de modelos de ser, de determinação de papéis de gênero, atinge a todas nós independentemente de onde estejamos, quem sejamos, ou como vivamos. Para mudar esse quadro desolador, a sociedade civil organizada e articulada trabalha para manter acesa a luz sobre os direitos humanos das mulheres.

Fonte: http://www.gestos.org/especial/12/03/2013/O_QUE_SE_PASSA_NA_57ordf_CSW_NA_ONU/. * As jornalistas Télia Negrão, do Coletivo Feminino Plural e da Rede Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos; e Alessandra Nilo, da ONG Gestos e do Conselho Latinoamericano de Organizações em AIDS (LACCASO) integram a delegação brasileira na 57ª CSW.

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